QUANDO O LICENCIAMENTO AMBIENTAL VIRA MOEDA DE TROCA
- Lia Barros

- há 1 dia
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Quem perde são nossas filhas e filhos

Quando o Congresso decidiu derrubar a maior parte dos vetos presidenciais à Lei Geral do Licenciamento Ambiental, ressuscitando o que tantos movimentos chamam de PL da Devastação, eu não consegui ler a notícia “apenas” como cidadã que se indigna com a política.
Li como mãe de duas filhas. Li como empreendedora que vive da natureza. Li como alguém que está, há anos, tentando construir um modelo de turismo que não precise destruir para depois “compensar”.
Porque, no fundo, é disso que estamos falando quando mexemos no licenciamento ambiental:de qual mundo vamos deixar para quem vem depois de nós.
O que está em jogo não é burocracia, é a linha de não retorno
O licenciamento ambiental sempre foi tratado, por muitos, como sinônimo de atraso: papelada, exigências “exageradas”, entraves ao desenvolvimento.Mas, na prática, ele é o principal filtro que o país tem antes de autorizar impactos que podem ser irreversíveis.
Ao derrubar os vetos, o Congresso:
amplia o uso do autolicenciamento, a famosa LAC, permitindo que empreendimentos de médio impacto sejam aprovados na base da autodeclaração;
flexibiliza ainda mais a proteção da Mata Atlântica, um bioma que já perdeu a maior parte da sua cobertura original, mas ainda sustenta milhões de pessoas;
enfraquece o papel de órgãos técnicos federais – como Ibama, ICMBio, Funai e Conama – em nome de uma “agilidade” que sabemos bem para quem costuma servir;
reduz o espaço de participação de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, justamente os primeiros a sentir na pele os impactos de grandes empreendimentos.
No papel, isso se vende como “modernização” e “desburocratização”.Na realidade concreta, significa mais desmatamento, mais rio contaminado, mais gente vivendo em áreas de risco, mais eventos extremos batendo à porta de cidades inteiras.
E aqui entra a tal “linha de não retorno”: floresta derrubada, aquífero comprometido, comunidade expulsa, espécie extinta. Isso não volta.Esse é o caminho sem volta de que estamos falando.
O choque entre o discurso climático e a prática política
Existe ainda uma contradição que dói acompanhar. De um lado, o Brasil se apresenta em conferências internacionais do clima como liderança, fala em desmatamento zero, transição justa, economia verde, atração de investimentos sustentáveis. Do outro, fragiliza o principal instrumento de proteção socioambiental do país, justamente no momento em que deveríamos estar aprimorando o licenciamento, não desmontando suas bases.
Essa contradição não é só estética.Ela tem efeitos concretos sobre:
a credibilidade internacional do Brasil,
a confiança de investidores que querem, de fato, sustentabilidade e não apenas discurso,
o risco climático, jurídico e reputacional que recai sobre o país como um todo.
No caso de quem e empreende e trabalha com e a partir da natureza, isso não é um debate teórico. Eu empreendo em turismo de natureza, com foco em experiências regenerativas. Minha “matéria-prima” não é um produto industrial: são florestas, rios, montanhas, mares, comunidades, culturas, territórios vivos. Quando o licenciamento é enfraquecido, a mensagem implícita é:
“Vamos liberar o impacto no atacado e, depois, alguém aí planta umas árvores, cria um projeto bonito e chama de compensação.”
Só que a conta não fecha. Você pode replantar árvores, mas não recria um ecossistema complexo da noite para o dia. Você pode apoiar projetos sociais, mas não desfaz, com uma canetada, o desalojamento de famílias inteiras. Você pode falar em neutralização de carbono, mas não devolve à vida quem perdeu tudo em enchentes e deslizamentos agravados por decisões irresponsáveis.
O que me indigna é ver que há outro modelo possível: Um modelo em que turismo, agricultura, cidades e negócios são pensados com respeito aos limites do território, em que o licenciamento é visto como garantia mínima de segurança, e não como um inimigo a ser derrotado em nome do crescimento a qualquer custo.
Maternidade, legado e a pergunta que não quer calar
Quando leio decisões como essa, volto sempre ao mesmo lugar interno:o futuro das minhas filhas.
Não quero que elas cresçam em um mundo em que beber água potável seja um privilégio, enchentes, queimadas e ondas de calor sejam “apenas mais uma temporada difícil” ou que a ideia de floresta seja, para muitas pessoas, algo que só existe em fotos do passado.
Quando o Estado flexibiliza instrumentos de proteção ambiental para agradar interesses de curto prazo, ele está, na prática, o que estamos dizendo para as próximas gerações? "Vocês que deem um jeito depois.”
Isso, para mim, é profundamente irresponsável, perigoso e curto-prazista e também um ataque direto ao que entendo por legado.
Legado, no meu vocabulário, não é só prêmio, patrimônio ou número de viagens realizadas. É o tipo de território que deixamos, a qualidade da água, o clima que nossas filhas e nossos filhos vão enfrentar, o nível de conflito ou de cuidado que vão herdar.
Não é ser contra desenvolvimento. É ser contra a devastação como modelo.
É importante dizer: nada disso é incompatível com desenvolvimento, muito pelo contrário; um país que leva a sério seu futuro econômico precisa cuidar da base que sustenta tudo:
solo produtivo,
clima minimamente estável,
biodiversidade,
segurança hídrica,
territórios saudáveis onde as pessoas que produzem e recebem turistas possam viver com dignidade.
Isso vale para o agronegócio, para o turismo, para a indústria, para as cidades. Não existirá negócio próspero em um país colapsado ambientalmente. Por isso, quando vejo o licenciamento sendo tratado como “entrave”, o que eu enxergo é, na verdade, um ataque à inteligência estratégica do próprio país. País sério não enfraquece seus mecanismos de controle, ele os melhora, torna mais transparentes, mais técnicos, mais eficientes. Mas não desmonta aquilo que impede que o irreversível aconteça.
Eu não tenho respostas simples, mas sei que silêncio não é opção. Como mãe, como empreendedora da natureza e como cidadã, eu escolho não normalizar esse tipo de retroceso, apoiar quem está na linha de frente da defesa socioambiental, usar a minha voz e o meu trabalho para lembrar que não existe planeta B, tampouco Brasil B, tampouco uma infância B.
Se você também atua em qualquer setor que dependa de água, solo, clima e gente viva – ou simplesmente se se importa com quem vem depois – esse debate não é “de nicho”. É um debate sobre qual história vamos contar para as próximas gerações quando elas nos perguntarem:
“E daí, o que vocês fizeram quando ainda dava tempo de escolher outro caminho?”
Lia Barros
Fundadora e CEO da Slow & Steady Travel




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